29 de janeiro de 2014

LADY GAGA E OS SAPATOS



Esta semana, a TRADI adoptou como tema aglutinador “os sapatos” e tornou-se claro, para mim, sobre qual personalidade reflectir. O que é importante que vocês percebam é que, talvez, este tenha sido o texto mais difícil e mais trabalhoso que eu escrevi para esta rubrica, até ao momento.

            Eu sou um tipo do rock. O meu carácter, enquanto homem, é um pouco duro, e ignoro o universo feminino no que, ao fascínio que os sapatos lhe provocam, diz respeito. De todos os géneros musicais, o pop que impera nas playlists das rádios que vão resistindo à evolução dos tempos, é aquele que menos me seduz… Mas, de repente, vi-me perante a evidência de ter de escrever sobre uma das suas figuras mais carismáticas e o seu fascínio por sapatos.

            Lady Gaga nascida, Stefani Germanotta a 28 de Março de 1986, em Nova York, tornou necessário que, vasculhasse as minhas referências cinéfilas e musicais em frente ao ecrã dos computadores da sala dos professores, com os fones bem enfiados nos ouvidos.

            Wikipédia para trás, cara de póquer (perante centenas de imagens de diferentes sapatos usados em outras tantas centenas de aparições) para a frente e encontrei o elo de ligação: David Bowie. Coisas de mnemónica e processos mentais, lembrei-me das palavras de Oscar Wilde citadas pelo personagem Brian Slade no filme Velvet Goldmine…
            - Give a man a mask and he will tell you the truth. (Dêem a um homem uma máscara e ele dir-vos-á a verdade.)
            … E o nó desatou-se a partir daí.
            Curiosamente, há um ditado popular sobre sapatos que traduz uma ideia semelhante:
            - Cada um sabe onde o sapato lhe aperta.

            O que sei sobre eles é que, normalmente, são um dos objectos em que se repara quando se procura avaliar a imagem social e a auto-estima de alguém. É, talvez por isso, algo que causa fascínio ao universo feminino. Penso que tem a ver com a intemporalidade. Um acessório, ainda que o corpo e a aparência mudem ou envelheçam, mantém-se inalterável. Os sapatos, em especial, ajudam a moldar a silhueta feminina. Podem elevá-la ou corrigir-lhe a postura.

Não há mulher de bem com a vida que não mire a sua figura ao espelho, procurando combinar a indumentária com um acessório (mala ou sapato) por estrear. Raras são também as que, nos momentos de mágoa, fogem ao entrar e sair de lojas atrás daqueles que melhor se ajustam a si e ao seu poder de compra. Talvez haja algo de antidepressivo nesse hábito de, cuidarmos de nós, através das compras…

            O que têm citações de um autor clássico ou populares, um filme, um cantautor e os hábitos em torno de um objecto em comum?

            A compreensão de que Lady Gaga é, mais do que tudo, uma personagem. Um ser andrógino, fabricado pela indústria discográfica. As suas letras, músicas, maquilhagem, guarda-fatos e videoclips são resultantes do trabalho de uma vasta equipa que analisa e testa exaustivamente cada pormenor que rodeia a sua vida pessoal, social e profissional.

            A sua máscara constrói-se em torno das indumentárias e de um discurso sexualmente agressivo, intencionalmente destinado a provocar e a instigar a controvérsia.

            Na história da música, as raízes dessa pantomínia estão presentes nos finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, nas conservadoras terras de Sua Majestade. A resposta britânica ao flower power do movimento Hippie, foi a importação das indumentárias de bombazine e a conjugação das suas cores e formas num ridículo coberto de purpurinas e brilho, a que se deu o nome generalista de Glam.

            Primeiro, o movimento cingiu-se ao rock. As manifestações dos operários fabris de Manchester e Liverpool acalmariam com a subida de Margaret Tatcher ao poder e o Punk definhava. Começariam a surgir as alternativas mais obscuras: Joy Division, Velvet Underground, Iggy Pop e os seus Stooges; mas a influência de Woodstock rapidamente se instalou no imaginário colectivo da velha Europa. É então que Mick Jagger e os Rolling Stones vivem a sua fase mais experimental e interessante. É então que Ziggy Stardust, um marciano nascido como alterego de David Bowie, atinge o estrelato.

            A partir desse momento, o Glam, como todos os movimentos, diluiu-se no mainstream e tornou-se um epíteto. Antes mesmo de ser apenas mais uma variável da norma, foi Glam Metal com os Kiss e Glam Pop com os Abba... (Os góticos Sister of Mercy e Bauhaus serão, talvez, a sua face mais negra.)

            O filme Velvet Goldmine, uma obra prima para quem gosta da música da época, (conta com a participação dos Placebo e a banda sonora é composta por músicas de Velvet Underground, Iggy Pop, entre outros...) associa o estilo de vida do emergente Glam ao romantismo britânico do século XIX, através dos escritos e do universo visual de James Joyce e Oscar Wilde e fala das entrelinhas da ascenção e da queda de Ziggy Stardust, ainda que não de uma forma declarada.

            É possível perceber-se a matriz do personagem de Lady Gaga nesse mesmo universo. A bissexulidade, a libertinagem, o questionamento da norma quando realizado através dos comportamentos e não da sua sustentação emocional ou filosófica, a máscara estética como forma de afirmação de uma mensagem e de um carácter. Há até uma semelhança física entre o personagem de Bowie e a sua própria figura...

            O que é que tudo isto tem a ver com sapatos?
            A bandeira de uma geração e o seu pensamento dominante são os passos que são dados por ela. A ascenção de Lady Gaga enquanto personagem, segundo o princípio sustentado pela citação de Oscar Wilde, mostra-nos a verdade sobre o nosso próprio mundo, mais do que sobre uma indústria ou um artista. E a verdade é essa mesma:
            O mundo baseia-se na indústria que se serve e serve (d)os personagens de cada um.

            Lady Gaga constrói-se num absoluto equilíbrio estético em que todo o figurino se ergue em torno dos temas que calça. Há, na rede, um verdadeiro manancial de temáticas que os seus sapatos já abordaram, incluindo um par construído com carne crua. Os seus sapatos de tacão alto, sem salto, também são bastante famosos, bem como uma ou duas quedas em tapetes vermelhos, proporcionados pelo desconforto do seu caminhar...


            (Este “Velho do Restelo” termina a crónica desta semana com reticências pois sabe bem o que “aperta” na natureza desses sapatos. O que vislumbro, no repetir dos ciclos da história é que, tal como a sociedade do início dos anos 70 e os seus hippies, beatnicks, punks e glammers, a que nos rodeia, usa a aparência para aprisionar no olhar a deriva resultante da falta de sustentação da opulência.)



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