Esta semana, a TRADI adoptou como
tema aglutinador “os sapatos” e tornou-se claro, para mim, sobre qual
personalidade reflectir. O que é importante que vocês percebam é que, talvez,
este tenha sido o texto mais difícil e mais trabalhoso que eu escrevi para esta
rubrica, até ao momento.
Eu
sou um tipo do rock. O meu carácter,
enquanto homem, é um pouco duro, e
ignoro o universo feminino no que, ao fascínio que os sapatos lhe provocam, diz
respeito. De todos os géneros musicais, o pop
que impera nas playlists das rádios que vão resistindo à evolução dos
tempos, é aquele que menos me seduz… Mas, de repente, vi-me perante a evidência
de ter de escrever sobre uma das suas figuras mais carismáticas e o seu
fascínio por sapatos.
Lady
Gaga nascida, Stefani Germanotta a 28 de Março de 1986, em Nova York, tornou
necessário que, vasculhasse as minhas referências cinéfilas e musicais em
frente ao ecrã dos computadores da sala dos professores, com os fones bem
enfiados nos ouvidos.
Wikipédia
para trás, cara de póquer (perante centenas de imagens de diferentes sapatos
usados em outras tantas centenas de aparições) para a frente e encontrei o elo
de ligação: David Bowie. Coisas de mnemónica e processos mentais, lembrei-me
das palavras de Oscar Wilde citadas pelo personagem Brian Slade no filme Velvet
Goldmine…
-
Give a man a mask and he will tell you the truth. (Dêem a um homem uma máscara
e ele dir-vos-á a verdade.)
…
E o nó desatou-se a partir daí.
Curiosamente,
há um ditado popular sobre sapatos que traduz uma ideia semelhante:
-
Cada um sabe onde o sapato lhe aperta.
O
que sei sobre eles é que, normalmente, são um dos objectos em que se repara
quando se procura avaliar a imagem social e a auto-estima de alguém. É, talvez
por isso, algo que causa fascínio ao universo feminino. Penso que tem a ver com
a intemporalidade. Um acessório, ainda que o corpo e a aparência mudem ou
envelheçam, mantém-se inalterável. Os sapatos, em especial, ajudam a moldar a
silhueta feminina. Podem elevá-la ou corrigir-lhe a postura.
Não há mulher
de bem com a vida que não mire a sua figura ao espelho, procurando combinar a
indumentária com um acessório (mala ou sapato) por estrear. Raras são também as
que, nos momentos de mágoa, fogem ao entrar e sair de lojas atrás daqueles que
melhor se ajustam a si e ao seu poder de compra. Talvez haja algo de
antidepressivo nesse hábito de, cuidarmos de nós, através das compras…
O
que têm citações de um autor clássico ou populares, um filme, um cantautor e os
hábitos em torno de um objecto em comum?
A
compreensão de que Lady Gaga é, mais do que tudo, uma
personagem. Um ser andrógino, fabricado pela indústria discográfica. As suas
letras, músicas, maquilhagem, guarda-fatos e videoclips são resultantes do
trabalho de uma vasta equipa que analisa e testa exaustivamente cada pormenor
que rodeia a sua vida pessoal, social e profissional.
A
sua máscara constrói-se em torno das indumentárias e de um discurso sexualmente
agressivo, intencionalmente destinado
a provocar e a instigar a controvérsia.
Na
história da música, as raízes dessa pantomínia estão presentes nos finais dos
anos 60 e inícios dos anos 70, nas conservadoras terras de Sua Majestade. A
resposta britânica ao flower power do movimento Hippie, foi a importação das indumentárias de bombazine e a
conjugação das suas cores e formas num ridículo coberto de purpurinas e brilho,
a que se deu o nome generalista de Glam.
Primeiro,
o movimento cingiu-se ao rock. As
manifestações dos operários fabris de Manchester e Liverpool acalmariam com a
subida de Margaret Tatcher ao poder e o Punk
definhava. Começariam a surgir as alternativas mais obscuras: Joy Division,
Velvet Underground, Iggy Pop e os seus Stooges; mas a influência de Woodstock
rapidamente se instalou no imaginário colectivo da velha Europa. É então que Mick Jagger e os Rolling Stones vivem a
sua fase mais experimental e interessante. É então que Ziggy Stardust, um
marciano nascido como alterego de David Bowie, atinge o estrelato.
A
partir desse momento, o Glam, como
todos os movimentos, diluiu-se no mainstream
e tornou-se um epíteto. Antes mesmo de ser apenas mais uma variável da norma,
foi Glam Metal com os Kiss e Glam Pop com os Abba... (Os góticos Sister of Mercy e Bauhaus serão,
talvez, a sua face mais negra.)
O
filme Velvet Goldmine, uma obra prima para quem gosta da música da época,
(conta com a participação dos Placebo e a banda sonora é composta por músicas
de Velvet Underground, Iggy Pop, entre outros...) associa o estilo de vida do
emergente Glam ao romantismo
britânico do século XIX, através dos escritos e do universo visual de James
Joyce e Oscar Wilde e fala das entrelinhas da ascenção e da queda de Ziggy
Stardust, ainda que não de uma forma declarada.
É
possível perceber-se a matriz do personagem de Lady Gaga nesse mesmo universo.
A bissexulidade, a libertinagem, o questionamento da norma quando realizado
através dos comportamentos e não da sua sustentação emocional ou filosófica, a
máscara estética como forma de afirmação de uma mensagem e de um carácter. Há
até uma semelhança física entre o personagem de Bowie e a sua própria figura...
O
que é que tudo isto tem a ver com sapatos?
A
bandeira de uma geração e o seu pensamento dominante são os passos que são
dados por ela. A ascenção de Lady Gaga enquanto personagem, segundo o princípio
sustentado pela citação de Oscar Wilde, mostra-nos a verdade sobre o nosso
próprio mundo, mais do que sobre uma indústria ou um artista. E a verdade é
essa mesma:
O
mundo baseia-se na indústria que se serve e serve (d)os personagens de cada um.
Lady
Gaga constrói-se num absoluto equilíbrio estético em que todo o figurino se
ergue em torno dos temas que calça. Há, na rede,
um verdadeiro manancial de temáticas que os seus sapatos já abordaram,
incluindo um par construído com carne crua. Os seus sapatos de tacão alto, sem
salto, também são bastante famosos, bem como uma ou duas quedas em tapetes
vermelhos, proporcionados pelo desconforto do seu caminhar...
(Este
“Velho do Restelo” termina a crónica desta semana com reticências pois sabe bem
o que “aperta” na natureza desses sapatos. O que vislumbro, no repetir dos
ciclos da história é que, tal como a sociedade do início dos anos 70 e os seus hippies, beatnicks, punks e glammers, a que nos rodeia, usa a
aparência para aprisionar no olhar a deriva resultante da falta de sustentação
da opulência.)
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